Da aristocracia ao arraial: conheça a história inesperada das quadrilhas juninas até virarem a alma do São João
08/06/2025
(Foto: Reprodução) Com elementos típicos de um baile na roça, a tradição tem origem nas danças de salão das cortes europeias, e foi adaptada no Brasil com influências indígenas e africanas. Pesquisadora Cibele Barbosa, da Fundaj, explica as origens das quadrilhas juninas
"Anarriê!", "alavantu!", "balancê!", "olha a cobra!", "é hora do passeio na roça!"... Mesmo quem não é do Nordeste certamente já ouviu, ao menos, uma dessas expressões que animam as festas de São João país afora (veja vídeo acima). Cada uma com seu significado, elas servem para um simples (e fundamental) objetivo: "puxar" as quadrilhas juninas.
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Divididos em pares, esses grupos, que podem reunir até mais de 200 pessoas, são a "alma" de uma festa junina. Isso porque carregam todos os elementos típicos de um baile na roça, com casais fazendo vários movimentos, conduzidos por um puxador, ao som de uma batida de forró.
Antes vistas como uma brincadeira de família restrita a pequenas comunidades, as quadrilhas cresceram ao longo do tempo e hoje promovem grandes espetáculos, que disputam torneios interestaduais, como o Festival de Quadrilhas Juninas da TV Globo.
Mas você sabe de onde vem e como surgiu essa tradição? Faltando pouco mais de duas semanas para uma das maiores festas populares do país, o g1 ouviu especialistas e representantes de agremiações para entender o que é essa manifestação cultural e como ela evoluiu ao longo da história.
O que é uma quadrilha junina?
Uma quadrilha é composta por pares que se juntam num grande círculo para dançar forró de forma sincronizada. Em geral, a coreografia simula um baile de casamento matuto. A depender do tamanho e da organização do evento, há brincantes com papéis específicos, incluindo noivo, noiva e padre.
Uma figura essencial em qualquer quadrilha é o puxador, que conduz os casais, dizendo quais movimentos os participantes vão fazer. Entre eles, estão:
"Alavantu!" — comando para que os casais, separados em duas filas, fiquem de frente um do outro no centro do salão;
"Anarriê!" — outro comando para que todos os brincantes retrocedam, retornando para onde estavam antes do "alavantu";
"Balancê!" — os pares dançam juntos, balançando o corpo;
"Passeio na roça" — os casais seguem passeando em um grande círculo, com um par atrás do outro;
"Olha a chuva!" — os participantes ficam de costas para o seu par e os dois dão as mãos, simulando um formato de guarda-chuva;
"Olha a cobra!" — os brincantes pulam e gritam como se uma cobra tivesse entrado no arraial;
"Olha a foto!" - os brincantes ficam parados por alguns segundos, como estátuas, como se estivessem se preparando para uma foto.
Nas últimas décadas, a brincadeira folclórica se profissionalizou a partir de grupos que começaram a montar grandes espetáculos, disputando campeonatos com temas e enredos. Nesses festivais, as agremiações tem, geralmente, entre 25 e 30 minutos para se apresentarem ao público, numa estrutura que lembra os desfiles de escolas de samba no carnaval.
"O casamento é um elemento crucial. Então, a figura do padre, o religioso, a figura oficial da noiva, do noivo, são componentes que vão dando essa identidade para a quadrilha, seja ela numa versão mais contemporânea, estilizada, seja ela mais tradicional", explica a historiadora Cibele Barbosa, pesquisadores da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj).
Como surgiram as quadrilhas?
O nome "quadrilha" tem origem na palavra "quadrille", termo francês usado para designar um conjunto de danças de salão praticadas pelas cortes europeias, como polca, valsa e mazurca.
Trazidas ao Brasil pelos portugueses, elas foram adaptadas à medida que se popularizavam, ganhando releituras com influências indígenas e africanas, numa época em que havia poucas cidades e a maior parte da população vivia nas zonas rurais.
"Quando a corte vem para o Brasil, com João 6º, também traz consigo seus hábitos, incluindo aí as danças da corte, no caso, a quadrilha, que era o nome. Tanto que, praticamente, todos os nomes que se usam nas quadrilhas hoje são adaptações do francês, exatamente por conta dessa origem da dança. Então, vem 'alavantu', que é 'en avant tous' ou 'todos para a frente'; 'balancê', que vem do mesmo verbo francês de balançar", afirma Cibele Barbosa.
De acordo com o professor Hugo Menezes, do Departamento de Sociologia, Antropologia e Museologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), as quadrilhas se disseminaram nas festas juninas, que originalmente, na Europa, celebravam a fartura no solstício de verão no hemisfério norte e que, depois, foram incorporadas pela Igreja Católica. Daí, a homenagem a São João.
"Essa quadrilha no campo é apropriada pelas bases rurais brasileiras e chega às cidades por meio da migração [...]. As cidades se urbanizam no começo do século 20 e uma leva grande da experiência rural passa a ser acionada pela nova experiência urbana, especialmente para lembrar ao povo da cidade que a experiência rural é de oposição à experiência da cidade", conta.
Raio de Sol, campeã do Festival de Quadrilhas Juninas da TV Globo em 2024
Brenda Alcântara/Divulgação
Identidade nordestina
Mas foi somente em meados do século 20, entre as décadas de 1930 e 1960, que o forró foi incorporado às festas juninas e se popularizou, com o trabalho de artistas como Luiz Gonzaga, o que ajudou a consolidar as quadrilhas como uma marca cultural do Nordeste — região que só foi delimitada oficialmente em 1969.
"Acho que a gente teve uma experiência muito peculiar na região Nordeste de processo migratório. E as quadrilhas e as festas juninas são festas de migrantes, que falam sobre a migração campo-cidade, sobre a reafirmação do campo na cidade e sobre elementos simbólicos que compõem uma identidade regional, espalhados no Brasil", afirma o professor Hugo Menezes.
Como lembra o especialista, esse é um processo bastante recente do ponto de vista histórico.
"Ao mesmo tempo em que o forró foi apropriado, ganhou vulto nas festas juninas, ele também compõe o Nordeste. O forró é responsável pela ideia de ser nordestino. Isso quem fala é o historiador Durval Muniz, que tem um livro chamado 'A invenção do Nordeste'. Ele fala que o forró é um vetor para essa invenção. É a partir do forró, das músicas de Luiza Gonzaga que se espalharam no Brasil inteiro, que o Brasil inteiro conhece o 'luar do Sertão' mesmo sem nunca ter ido ao Sertão", analisa o pesquisador.
Lumiar traz elementos da xilogravura para apresentação no São João 2025
Viana Santos/Divulgação
Tradição e inovação
Ao longo dos anos, a festa recebeu inovações, adquirindo novas linguagens por meio de espetáculos cada vez mais elaborados, com mudanças que foram sendo incorporadas há, relativamente, pouco tempo.
Vandré Cechinel participa há 19 anos da quadrilha Raio de Sol, de Águas Compridas, em Olinda, que foi a vencedora regional do Festival de Quadrilhas Juninas da TV Globo em 2024. Depois de vários ciclos juninos desfilando como brincante, ele é hoje um dos integrantes da direção artística da agremiação, e viu de perto as transformações.
Fundada em 1996 como uma quadrilha mirim de uma escola de bairro, a Raio de Sol é um exemplo de grupo que cresceu e se "profissionalizou".
"Era uma época em que tinha muito mais grupos de quadrilha junina. Os arraiais eram mais longos. Já cheguei a dançar em vários arraiais numa noite. Tanto porque os arraiais terminam mais tarde como porque os arraiais eram muito próximos um do outro [...]. As quadrilhas não eram tão aprimoradas e eram arraiais pequenos, em praças ou ruas", recorda.
Outro exemplo de grupo que acompanhou essas inovações é a quadrilha Lumiar, criada no bairro do Pina, na Zona Sul do Recife, em 1994, e que venceu a etapa estadual do concurso, também em 2024. Para o diretor executivo da agremiação, Fagner Valadares, esse crescimento permitiu aprimorar as apresentações do ponto de vista artístico.
"Ela [a Lumiar] vem de uma quadrilha extremamente tradicional para uma quadrilha hoje dita estilizada, recriada. Ela passa por essas interfaces no período de São João, em que ela consegue desmistificar as barreiras dentro do movimento junino. Ela deixa os longos vestidos para dançar com bambolês [...], quando foram incluídas as primeiras damas trans. A Lumiar tem um comprometimento com a questão social, de inclusão do público LGBTQIA+", diz.
Segundo Vandré Cechinel, da Raio de Sol, os espetáculos são maiores, porém concentrados em poucos eventos, que contam com uma estrutura mais cara.
"Um aspecto positivo são espetáculos dignos de apresentações artísticas profissionais, que podem ir para o palco e serem vistas no Brasil todo. Por outro lado, houve um encarecimento das quadrilhas [...]. Mas enfrento muito o discurso de que não é mais quadrilha. Isso, para mim, é uma discussão bastante ultrapassada porque nenhuma manifestação é igual a como era 20 anos atrás. Houve apenas uma atualização, uma linguagem mais urbana", afirma.
De toda forma, as modernizações, em diálogo com as tradições, ajudam a manter o movimento relevante, como atesta Fagner Valadares, da Lumiar.
"Venho de quadrilhas juninas desde 1999. E lá tínhamos 100, 120 quadrilhas dentro dos festivais. E atualmente a gente não tem. A gente percebe que o brinquedo vem perdendo força, mas a gente permanece nessa situação de resistência. As quadrilhas perderam seus espaços nos bairros. Não se tem mais aquele 'palhoção' tradicional, com bandeirinhas e balões na comunidade. São pouquíssimos agora. Agora são quadras, arenas. E poucas", avalia.
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